A influência da fiscalidade sobre a contabilidade a partir do julgamento dos contabilistas certificados portugueses. - Vol. 32 Núm. 84, Enero 2022 - Revista Innovar - Libros y Revistas - VLEX 899366382

A influência da fiscalidade sobre a contabilidade a partir do julgamento dos contabilistas certificados portugueses.

AutorPereira, Sofia

Historicamente, cada país desenvolveu o seu padrão ou sistema de contabilidade e relato financeiro, criando, assim, uma barreira de informação que resultava na falta de comparabilidade. A problemática em torno da classificação dos diferentes sistemas contabilísticos internacionais foi matéria de estudo e análise de alguns autores, com destaque para Nobes (1981, 1983). Posteriormente, Gray (1988) definiu um modelo baseado em valores culturais no âmbito específico da contabilidade que permitisse explicar as diferenças em torno do relato financeiro dos vários países.

O movimento mais recente em torno da harmonização e da convergência contabilísticas internacional tem sido conduzido pelo International Accounting Standards Board (IASB), através da produção de um conjunto de normas, nomeadamente as International Accounting Standards (IAS) e as International Financial Reporting Standards (IFRS), tendo em vista um relato financeiro globalmente comparável.

Tradicionalmente, no entanto, Portugal tem sido classificado como um país conservador em matéria de relato financeiro, quer no que respeita ao seu enquadramento na literatura sobre os sistemas contabilísticos internacionais (Nobes, 1983), quer como resultado do valor cultural do conservadorismo, inerente aos profissionais no âmbito da contabilidade (Gray, 1988). Tal enquadramento pode resultar na existência de potenciais enviesamentos no que respeita à apresentação de um relato financeiro o mais possível comparável, considerando a influência do conservadorismo no contexto do julgamento profissional em contabilidade. Subjacente ao conservadorismo, encontra-se, ainda, a influência da fiscalidade na definição das políticas contabilísticas.

Em 2010, Portugal adotou o Sistema de Normalização Contabilística (SNC) no sentido de convergir o seu sistema contabilístico com as IAS-IFRS do IASB. Como tal, assim como as IAS-IFRS, um conjunto expressivo das Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro (NCRF) emitidas pela Comissão de Normalização Contabilística (CNC) requer o julgamento profissional, o que pode conduzir a diferentes interpretações por parte dos preparadores da informação financeira.

Existindo essa subjetividade nas normas, os preparadores poderão basear as suas decisões nas normas fiscais, de modo a evitar a assunção de riscos associados à tomada de decisão, o que encontra justificação no conservadorismo enquanto valor cultural no âmbito da contabilidade (Gray, 1988). Em termos mais específicos, possibilita em complemento evitar as divergências, sobretudo em matéria de imposto sobre o rendimento, com as autoridades fiscais de cada país.

A definição de critérios baseados na fiscalidade, quando tal se revela possível, poderá prejudicar a característica qualitativa da relevância e a representação fidedigna da informação financeira, se em casos mais extremos puser em causa a perspetiva económica das transações e eventos objetos de relato, sem prejuízo, no entanto, da consideração do custo (ou da relação custo versus benefício) nas decisões subjacentes ao reconhecimento, à mensuração, à divulgação e à apresentação de tais fenómenos.

De facto, o custo como constrangimento à informação financeira assume tal importância que resultou na consideração por parte do IASB e da CNC de normativos mais simplificados para entidades de menor dimensão, menos complexas e com necessidades de informação mais reduzidas. Em Portugal, esse aspeto revela-se, designadamente, na maior aproximação entre algumas políticas contabilísticas existentes não só na Norma Contabilística e de Relato Financeiro para as Pequenas Entidades (NCRF-PE), mas também, e sobretudo, na Norma Contabilística e de Relato Financeiro para as Microentidades (NCRF-ME) e os critérios de natureza fiscal. Mais especificamente, observa-se que, em matéria de depreciações, as microentidades devem utilizar o método da linha reta, que representa o critério prioritário em matéria fiscal, tendo ainda que utilizar o modelo do custo para os seus ativos fixos tangíveis e intangíveis, sem consideração quanto às imparidades, cuja consideração fiscal se apresenta bastante limitada.

Considerando os elementos anteriores, importa perceber se os preparadores portugueses, neste estudo representados pelos contabilistas certificados (CC), encontram-se influenciados por critérios de ordem fiscal, em detrimento de critérios económicos, na tomada de decisão em matéria de contabilidade e relato financeiro. Entre essas matérias, incluem-se, designadamente, as perdas por imparidade, depreciações e amortizações, provisões e modelos de mensuração subsequente em geral, em que os critérios fiscais entram potencialmente em conflito com os critérios contabilísticos, definidos, por seu turno, à luz de fundamentos de natureza mais económica baseados na característica qualitativa da representação fidedigna.

Pretende-se perceber, mais especificamente, se as políticas contabilísticas são selecionadas com base na fiscalidade ou a partir de critérios económicos, mais próximos dos vertidos nas IAS-IFRS do IASB e, consequentemente, nas NCRF do SNC em Portugal.

Em termos mais concretos, com a convergência das normas nacionais com as normas internacionais (IAS-IFRS do IASB), importa perceber se os critérios mais alinhados com a fiscalidade prevalecem, ou não, nas decisões tomadas em matérias ligadas, em última instância, ao relato financeiro. Em causa, normativos que se encontram baseados maioritariamente em princípios, em detrimento de regras, sendo o exercício do julgamento profissional um elemento relevante na sua aplicação.

Este estudo revela-se, assim, oportuno na medida em que o SNC se encontra em vigor há mais de dez anos, sendo relevante perceber-se se, de facto, ao fim desse tempo, observa-se uma mudança cultural na forma como são definidas e concebidas as políticas contabilísticas que, ao fim, encontram-se refletidas no relato financeiro.

Apesar da antiguidade dos modelos de Nobes (1981, 1983) e Gray (1998), estudos mais recentes, ainda que pouco numerosos, apontam para a influência da fiscalidade sobre a contabilidade, sendo possível identificar evidências nessa matéria, quer em Portugal (designadamente, Figueiredo, 2016; Marcelino, 2013; Nascimento & Góis, 2014), quer noutros países (designadamente, Fekete et al., 2011; Moisescu, 2018; Tzovas, 2006).

Este artigo divide-se, para além desta primeira (introdução), em mais quatro seções cujo conteúdo se descreve a seguir. A segunda seção (enquadramento teórico) apresenta os aspetos relativos à harmonização contabilística internacional, à influência da fiscalidade sobre a contabilidade, bem como os estudos relativos à cultura e ao julgamento profissional. A terceira (hipótese e metodologia) apresenta a hipótese definida e a metodologia utilizada para o desenvolvimento do estudo, incluindo elementos tais como o instrumento de recolha, a população, a amostra e o período do estudo, bem como as técnicas estatísticas utilizadas para o tratamento dos dados. Na quarta seção (apresentação e discussão dos resultados) são detalhados e analisados os resultados obtidos no presente estudo e, por fim, a quinta seção (conclusões) se dedica à divulgação das conclusões obtidas, sendo também apresentadas as limitações e as perspetivas para o desenvolvimento de futuros estudos nessa linha de investigação.

Enquadramento teórico

A harmonização internacional, conduzida principalmente através do IASB, visa assegurar um nível adequado de comparabilidade da informação financeira no relato das entidades de distintos países.

A União Europeia (UE), na tentativa de atingir tal objetivo, decidiu adotar as IAS-IFRS. Para o efeito, foi publicado em 2002 o Regulamento 1.606/2002/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 19 de julho, a partir do qual as entidades com valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado na UE passaram, a partir de 1 de janeiro de 2005, a ser obrigadas a adotar as IFRS na preparação das suas demonstrações financeiras consolidadas. Adicionalmente, também as entidades emitentes de valores mobiliários que não apresentem contas consolidadas passaram, a partir de 2007, através do Regulamento 11 /2005 da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), a ter de apresentar as suas contas individuais em conformidade com as IFRS do IASB.

O Decreto-Lei 35/2005, de 17 de fevereiro, responsável pela transposição da Diretiva 2003/51/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de junho de 2003, veio ampliar o âmbito de aplicação das NIC, com caráter alternativo, às contas consolidadas de entidades não emitentes de valores mobiliários, bem como às contas individuais de entidades incluídas no perímetro de consolidação de outras que adotem, obrigatória ou facultativamente, as NIC.

Em 2010, Portugal adotou o SNC, ao abrigo do Decreto-Lei 158/2009, de 13 de julho, conduzindo a que grande parte das entidades nacionais, não abrangidas pelas IFRS ou outros normativos especificamente aplicáveis a determinados setores, passassem a utilizar as NCRF, amplamente baseadas nas IAS-IFRS. O SNC integrava igualmente um regime específico e simplificado para as designadas pequenas entidades, que adotavam uma única norma: a NCRF-PE.

Ao abrigo da Lei 35/2010, de 2 de setembro, foi adotado um regime ainda mais simplificado, em face do regime das pequenas entidades, para as microentidades, o qual foi denominado "Normalização Contabilística para as Microentidades" (NCM), também com a previsão de uma única norma, atualmente designada NC-ME.

Posteriormente, o Decreto-Lei 158/2009 foi republicado por via do Decreto-Lei 98/2015, de 2 de junho, em resultado da transposição da Diretiva 2013/34/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, tendo-se integrado, no SNC, a Normalização Contabilística para as Microentidades (NCM).

Em síntese, o SNC e as IAS-IFRS passaram a integrar o conjunto normativo aplicável às entidades nacionais. Estando em causa normativos baseados em princípios, a possibilidade de...

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