A internacionalizacao do renminbi como um meio de contestacao/Renminbi Internationalization: Domestic Challenges and External Implications/La internacionalizaci - Vol. 32 Núm. 1, Enero 2020 - Revista Desafíos - Libros y Revistas - VLEX 842511642

A internacionalizacao do renminbi como um meio de contestacao/Renminbi Internationalization: Domestic Challenges and External Implications/La internacionalizaci

AutorDe Sousa, Ana Tereza Lopes Marra
Páginas1F(30)

Introdução

Neste trabalho, investigou-se o incipiente processo de internacionalização da moeda chinesa, o renminbi (RMB). Questionou-se a natureza desse fenômeno com o objetivo de compreender se ele pode ser entendido como um movimento de integração da China nos mercados financeiros globais, dominados por Wall Street, e complementar ao papel do dólar, ou, como uma forma de contestação a esses mercados, ao papel do dólar e ao exercício do poder dos EUA no sistema financeiro e monetário.

Lembra-se que o domínio do dólar sobre o Sistema Monetário Internacional (SMI) avançou de forma substancial depois dos acordos de Bretton Woods (1944) (Gowan, 2003). Nesse sistema, mesmo que o ouro tivesse sido mantido como âncora cambial, a única moeda inicialmente conversível era o dólar, de forma que os agentes públicos e privados do Sistema Financeiro Internacional (SFI) se viram na situação de ter que incentivar o acúmulo de dólares como pré-condição para alcançar a conversibilidade ao ouro. Entretanto, ao longo das décadas de 1950 e 1960, a exportação de capitais, principalmente para a Comunidade Européia, e a expansão do poder militar americano pelo mundo, criaram déficits para os EUA, de modo que a conversibilidade dólar-ouro se viu ameaçada. Face a escolha por não realizar os ajustes econômicos necessários para a garantia do SMI, os EUA acabaram por unilateralmente dissolver o regime monetário de Bretton Woods, na década de 1970.

Esse colapso, contudo, não foi uma derrota para o capitalismo americano, uma vez que reforçou a constituição de um SMI e um SFI no qual, respectivamente, o dólar e os agentes que operam a partir do mercado financeiro americano--Wall Street--consolidariam seu papel central (Gowan, 2003). Como afirmam Gowan (2003) e Gilpin (2001), uma das novas características desse novo período, é que passou a haver uma articulação maior entre o SMI e o SFI, uma vez que sob Bretton Woods "Os mercados financeiros privados tinham sido em grande parte excluídos [...] do envolvimento no sistema monetário internacional" (Gowan, 2003, p. 51). A mudança promovida pelos EUA no SMI com o fim das taxas de câmbio fixas e da conversibilidade ao ouro, entretanto, fizeram com que "pela primeira vez na era pós-guerra, o sistema monetário internacional e as finanças internacionais interagissem e influenciassem um ao outro" (Gilpin, 2001, p. 234).

Tal esquema tornou a economia internacional mais instável, dado que "como os fluxos de capital internacional e investimentos estrangeiros são conduzidos em moeda, mudanças nas taxas de câmbio--isto é, no valor das moedas particulares--inevitavelmente mudam os valores dos investimentos" (Gilpin, 2001, p. 234). Como também o direcionamento do capital externo afeta os parâmetros de definição do valor da moeda nas economias nacionais. Contudo, o fato de os EUA deterem a moeda de maior uso internacional e o mercado financeiro, que passa por um processo de liberalização a partir da década de 1970, que é a base dos capitais privados internacionais, fez com que se elevasse sua liberdade para definir livremente o preço do dólar, ao mesmo tempo em que os países se tornaram "cada vez mais dependentes dos acontecimentos nos mercados financeiros anglo-americanos para administrar suas relações monetárias internacionais" (Gowan, 2003, p. 51). Dar-se-ia o surgimento de um novo padrão apelidado de Dolar Wall Street Regime (DWSR), dado o poder de Wall Street em determinar fluxos de investimento, oferta e demanda, emprego, taxas de câmbio e crédito, e o papel do dólar em alimentar o poder de Wall Street e ser por suas ações, reforçado enquanto moeda central do SMI (Gowan, 2003).

A esse padrão integraram-se, em maior ou menor grau, quase todos os países do mundo, principalmente a partir do fim da Guerra Fria e a desintegração da União Soviética, de forma subordinada ao papel desempenhado pelo dólar e Wall Street. Os movimentos, no plano doméstico, da progressiva liberalização financeira, a qual muitos países adotaram por pressão dos EUA e instituições internacionais por ele dominadas, e no plano internacional, da crescente mobilidade dos capitais, produziram uma intensificação dos fluxos internacionais e uma elevação no volume e maior velocidade nas transações de moedas. Durante esse período, moedas de outros países passaram a desempenhar papel internacional--como o yen japonês, o marco alemão, o euro da União Européia, e a libra, que já participava do SMI desde os tempos áureos do império britânico, entre outras--a partir de sua integração com o mercado financeiro comandado por Wall Street e de forma complementar ao papel do dólar.

Desse modo, o dólar ainda é central no SMI. No terceiro trimestre de 2018, 61,94% das reservas mundiais estavam alocadas em dólar (International Monetary Fund, 2019), 39,56 % de todos os pagamentos com a utilização do Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT) no ano de 2018 foram feitos na moeda (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication, 2019), enquanto estrangeiros detinham US$6 trilhões investidos em US treasury securities em novembro de 2018 (Department of the Treasury/Federal Reserve Board, 2019). Portanto, seja na função de reserva de valor, meio de pagamento ou unidade de conta, o dólar é dominante.

Entretanto, desde o advento da crise de 2008, momento em que se questionou o sistema financeiro ancorado em Wall Street e o próprio papel do dólar (Council of Foreign Relations, 2018), muito se tem especulado sobre o papel que outras moedas, além das citadas, podem cumprir no Sistema Monetário Internacional (SMI). Foi nesse cenário que se viu a ascensão do RMB, até então marginal no SMI, apesar da força económica chinesa. Dados da SWIFT (2019) mostram que de outubro de 2010 a dezembro de 2018, o RMB passou da 35a para a 5a colocação como moeda mais utilizada como meio de pagamento. O RMB foi incluído, ainda, na cesta dos Direitos Especiais de Saque (DES) do Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2016 (o que gradualmente deverá aumentar seu share como reserva de valor).

Uma das formas de interpretar a internacionalização do RMB no SMI é por meio de uma visão aliada a perspectiva liberal das relações internacionais, para a qual a ascensão da China, nas últimas décadas, tem ocorrido dentro dos parâmetros vigentes da ordem internacional, sem contestação direta ou confronto, uma vez que até o momento a situação teria sido de adequação do país, cujo sucesso econômico "e crescente influência está ligada as organizações internacionalistas liberais da política mundial" e, por isso, o país teria profundo desejo em preservar esse sistema (Ikenberry, 2011).

Por essa perspectiva, quando se analisa o processo de internacionalização do RMB, a tendência é que ele seja interpretado como um aspecto positivo da integração da China na ordem internacional, sendo visto mais como um aspecto reativo-defensivo da política chinesa, do que como uma estratégia para a conquista de poder nas relações internacionais. Trabalhos como o de Kroeber (2013) e Torres e Pose (2018) consideram a internacionalização do RMB a partir dessa perspectiva. Kroeber (2013) interpreta esse processo de internacionalização como sendo uma forma de adequação da China ao mercado financeiro internacional, uma vez que se considera que para impulsionar a utilização externa da moeda é necessária a abertura da conta capital e financeira, (1) o que na visão do autor seria o objetivo primário da política de internacionalização da moeda chinesa: obrigar o país a realizar um processo de abertura como moeda de troca para obter uma maior participação dentro do SMI.

Já Torres e Pose (2018) interpretam que a internacionalização do RMB "tem um caráter eminentemente defensivo. Seu intuito é diminuir a dependência da China e dos seus parceiros com relação ao uso do dólar em suas transações internacionais" (p. 4). A partir desse tipo de perspectiva, a internacionalização do RMB poderia ser vista como uma forma de ajudar a reduzir a pressão sobre o dólar, principalmente em um momento de crise, como ocorreu em 2008, e, ainda, como um meio para produzir o agiornamento do SMI, aumentando a sua legitimidade perante os países em desenvolvimento (Gao, 2010). Analisando a médio prazo, a inserção do RMB representaria mais um capítulo na história de ascensão de moedas de uso internacional, mas que se mantiveram ainda subjugadas ao dólar, como ocorreu com o yen, com o marco e com o euro, e integraram-se aos mercados financeiros globais operados por Wall Street.

Contudo, há outra forma de interpretar a internacionalização da moeda chinesa. Autores como Cohen (2006, 2017), Metri (2015, p. 69) e Strange (1994) enfatizam a importância da moeda como elemento para a construção de poder dos Estados. Em vez da crença liberal de que os atores buscam ganhos absolutos nas relações internacionais, tais autores partem da pressuposição de que a ausência de uma autoridade formalmente estabelecida, e com meios legítimos de impor a violência, torna o processo de alocação de valores, regras, normas e riqueza na economia política internacional uma questão de poder, o que faz com que os atores compitam com a finalidade de controlar o poder.

Como afirma Strange (1994), o poder que mais importa obter é o estrutural, que "é o poder de configurar e determinar as estruturas da economia política global dentro da qual outros Estados, suas instituições políticas, suas empresas econômicas e (não menos importante) seus cientistas e outros profissionais têm que operar" (pp. 24-25). O poder sobre a estrutura de finanças, que envolve a capacidade de criação de moeda--a produção de crédito--e, portanto, de acessar e distribuir os recursos necessários ao desenvolvimento, é um aspecto essencial da economia política global (Strange, 1994).

Como nos lembra Cohen (2006), a interpretação de que os assuntos econômicos, no qual se insere a moeda, sejam de baixa política e, assim, menos importantes, não condiz com a realidade, dado que o...

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