Peer-Review post-mortem: an - Vol. 46 Núm. 3, Septiembre 2023 - Revista Interamericana de Bibliotecologia - Libros y Revistas - VLEX 940593553

Peer-Review post-mortem: an

AutorPiumbato Innocentini Hayashi, Maria Cristina

Peer-review post-mortem: análise de obituários acadêmicos publicados na Revista Estudos Feministas

Peer-Review Post-Mortem in Academic Obituaries in the Revista Estudos Feministas

  1. Introdução

    Obituários também são sobre indivíduos, cujas vidas e identidades eles registram--e para muitas pessoas, eles re-presentam uma instância única em que sua história de vida é contada por um terceiro.

    (Taussig, 2017, p. 459)

    Obituários são atos de memorialização representados em tentativas de homenagear aqueles que faleceram mediante um modo particular de lembrar e esquecer. Também podem ser considerados uma forma de gestão de identidades dos falecidos, ao destacar suas imagens positivas e diminuir as negativas.

    Como referem Árnason et al.(2003) os obituários são construídos como um processo seletivo, no qual determinados aspectos sobre a vida do falecido são enfatizados e outros ignorados. Desse modo, a identidade do falecido é privatizada, pois sua construção é restrita ao seu relacionamento com o obituarista, isto é, aquele que redigiu o obituário, conforme foi notado por Lawuyi (1991). Essa construção, baseada na aspiração e não na verdadeira identidade da pessoa retratada no obituário faz com que este também funcione como como uma propaganda socialmente legitimada de pessoas falecidas e enlutadas, conforme destacado por Williams (1997), Bonsu (2007) e Phillips (2007).

    Os obituários também têm sido estudados como indicadores de organização social. Ao comprovarem como as pessoas são desiguais na vida e na morte, e alocar prestígio post-mortem os obituários promovem e criam discursivamente a existência de uma sociedade estratificada. Fowler (2004), amparada em uma perspectiva teórica bourdieusiana comenta que os obituários não devem ser vistos meramente como uma homenagem a indivíduos, mas como parte de um jogo mais amplo de poder simbólico.

    Por sua vez, os obituários acadêmicos podem ser entendidos como micronarrativas biográficas, e desse ponto de vista são uma expressão do reconhecimento científico àqueles que contribuíram para ampliar o conhecimento em suas áreas de atuação e podem revelar um tipo de avaliação post-mortem realizada pelos pares científicos, nos termos já postos por Merton (1973), Bourdieu (1988) e Hamann (2016).

    Como pode ser observado, os estudos de análises de obituários adotam diferentes perspectivas teóricas, entre elas a sociológica, histórica, literária, linguística. Entretanto, a análise de obituários acadêmicos ainda é escassa na literatura científica, principalmente na área de Ciência da Informação, embora esses gêneros textuais estejam presentes em diversos periódicos científicos.

    Desse modo e visando contribuir para o alargamento dos estudos na área de Ciência da Informação esse artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que foi orientada pela seguinte questão: quais são as características de avaliações post-mortem de trajetórias acadêmicas realizadas pelos pares em obituários acadêmicos publicados em um periódico científico do campo dos estudos feministas e de gênero? Para obter respostas para essa questão foram estabelecidos os seguintes objetivos: identificar e analisar as avaliações post-mortem contidas nos obituários acadêmicos publicados na Revista Estudos Feministas (REF).

    A escolha desse campo de estudos e do periódico REF deve-se aos seguintes fatores: pela representatividade da REF no campo de estudos feministas e de gênero, pois é publicada desde 1992 e está classificada no estrato mais alto (A1) do sistema de avaliação de periódicos científicos denominado Qualis/CAPES mantido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Brasil referente ao período 2016-2020. Além disso, os autores desse artigo já realizaram pesquisas sobre gênero e ciência (Camargo & Hayashi, 2017; Hayashi et al., 2018), o que confere segurança teórica e metodológica para escolha da REF.

    A fundamentação teórica e metodológica do estudo advém dos campos da Ciência da Informação e da Sociologia da Ciência uma vez que essas áreas permitem compreender como os obituários acadêmicos podem ser considerados um tipo de avaliação post-mortem de trajetórias acadêmicas e revelar aspectos singulares da trajetória de cientistas e intelectuais de diferentes áreas de conhecimento. Cabe ressaltar ainda que vários estudos abordaram a questão de obituário acadêmicos com as mais variadas metodologias e enfoques teoricos, contudo o presente estudo inova em relação aos demais ao utilizar um modelo de análise de obituários baseado em indicadores quantitativos advindos da Bibliometria e qualitativos baseados no referencial da Sociologia da Ciência. Diante disso, ao eleger os obituários acadêmicos como objeto de estudo a pesquisa contribui para alargar a produção de conhecimento no campo da Ciência da Informação. A próxima seção apresenta uma breve síntese da literatura científica que fundamentou a pesquisa sobre obituários acadêmicos.

  2. Um esboço da literatura científica sobre obituários acadêmicos

    Os obituários permitem que você veja os princípios de relacionamento com colegas e alunos, pontos de vista sobre a profissão, a missão de um cientista, a avaliação de suas qualidades morais e profissionais e outros componentes da cultura corporativa

    (Kuzoro, 2017, p. 46)

    Ao elegeram os obituários acadêmicos e homenagens póstumas como objeto de estudo a pesquisa de Kinnier et al., (1994) analisaram os obituários publicados na revista The American Psychologist no período de 1979 a 1990, visando criar um perfil demográfico dos psicólogos falecidos e classificar os valores com os quais eles eram associados. O estudo revelou que praticamente todos psicólogos obituariados eram acadêmicos e pesquiadores altamente produtivos e envolvidos ativamente em outras áreas profissionais, tais como administração e serviços.

    Posteriormente, Radtke et al. (2000) também focalizaram os obituários do The American Psychologist ampliando o recorte temporal até 1997. Por meio da análise do discurso verificaram que a imagem predominante do psicólogo bem-sucedido continua sendo a do cientista homem e a imagem dominante da Psicologia como disciplina continua sendo a versão neopositivista da ciência. Como consequência, as contribuições das mulheres para a disciplina são marginalizadas em relação às dos homens, e as controvérsias epistemológicas e teóricas que podem muito bem levar a mudanças significativas nas práticas disciplinares são suavizadas e ignoradas.

    A profissão bibliotecária retratada nos obituários do New York Times foi estudada por Dilevko e Gottlieb (2004). Os resultados mostraram que embora a Biblioteconomia seja uma profissão majoritariamente feminina, 63,4 % dos obituários narravam a vida de bibliotecários homens.

    O estudo de Mumford et al. (2005) analisou obituários de cientistas de várias áreas de conhecimento. Ao comparar os cientistas de alto e baixo desempenho em relação a eventos criativos nas suas carreiras, os autores verificaram que a realização científica e a criatividade eram fortemente influenciadas por um conjunto de características que foram denominadas de disposicionais, pois dependiam de um ato próprio do sujeito e que incluíam inteligência, pensamento crítico e flexível, abertura, curiosidade e motivação para conquistas.

    Por sua vez, Tight (2008) analisou os obituários de uma centena de acadêmicos publicados na imprensa britânica no ano de 2007 para observar o que diziam sobre a natureza mutável do trabalho acadêmico contemporâneo e como este era apresentado nesse gênero específico de escrita. O autor concluiu que o domínio masculino e a influência da Oxbridge, isto é, das universidades de Oxford e Cambridge, do Reino Unido, e do sistema de ensino superior americano permanecem fortes nos níveis mais altos da vida acadêmica que chegam às páginas do obituário. Outra conclusão foi que os obituários também ilustram o impacto de eventos e tendências globais, como a guerra mundial e a mobilida de internacional de mão-de-obra altamente qualificada, na academia. No nível individual, os obituários apresentaram uma imagem de conquistas quase míticas, trazidas à terra por relatos de carinho e excentricidade essencial.

    Ao partir do entendimento de que os obituários fornecem um último julgamento valioso e subutilizado sobre lideranças intelectuais Macfarlane e Chan (2014) analisaram obituários acadêmicos publicados entre 2008 e 2010 no periódico Times Higher Education, e sugeriram quatro elementos de liderança intelectual, vinculados aos obituários acadêmicos: paixão pela transformação, equilíbrio de virtudes pessoais, compromisso com o serviço e superação de adversidades. O estudo permitiu identificar a importância das características pessoais e das realizações acadêmicas na formação da reputação acadêmica.

    Fernández (2015) analisou um corpus de obituários publicados no Journal of Philosophy, Culture, Science and Education visando detectar quais são os assuntos que merecem esse tipo de homenagem póstuma dirigida geralmente para cientistas e educadores, bem como sua relação com a concepção de cultura moderna que é dominante nesta publicação. O estudo conclui que figuras femininas são exceção e masculinas são majoritárias nesses obituários, os quais são destinados a intelectuais sintonizados com a orientação ideológica da publicação, isto é, cientistas, educadores, filósofos, jornalistas e políticos que colaboraram com o avanço da ciência e da educação. Para a autora, os obituários produzem uma "apropriação simbólica de certas figuras mediante o uso seletivo de dados sobre sua trajetória de vida que levam a resgatar determinadas facetas por razões de afinidade intelectual e proximidade ideológica" (Fernández, 2015, p. 203).

    Para Hamann (2015) os obituários acadêmicos publicados em revistas acadêmicas expõem um sistema de valores e geralmente são de autoria de um porta-voz da comunidade devidamente designado para fazer o julgamento final de um membro falecido. Na visão do autor, como geralmente...

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