Do Patrimônio Imaterial às Populações Tradicionais Brasileiras - Núm. 14-1, Enero 2014 - Criterio Jurídico - Libros y Revistas - VLEX 594122850

Do Patrimônio Imaterial às Populações Tradicionais Brasileiras

AutorFabiana Pacheco de Souza Silva, Raquel Lima de Abreu Aoki, William Ken Aoki
Páginas173-202

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1. A história da proteção patrimonial

Por necessidade de proteção daquilo que lhe é mais caro, o homem, desde a Antiguidade, tende a cuidar do patrimônio que possui; sendo este individual ou coletivo.

Mundialmente, o patrimônio passa a ser cuidado de forma mais específica com o surgimento da possibilidade de perda de valores. Um evento específico suscitou preocupação internacional: a grande represa de Assuan, no Egito.

Com a construção da represa, o vale no qual se encontravam os templos de Abu Simbel, tesouro da antiga civilização egípcia, seria inundado. A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em 1959, diante do acontecido, decidiu lançar uma campanha internacional a partir de solicitação advinda, conjuntamente, dos governos do Egito e do Sudão1.

Pesquisa arqueológica foi, então, acelerada nas áreas que seriam inundadas provocando ação imediata, o que proporcionou que os templos fossem desmontados completamente, transportados a outro terreno a salvo da inundação e montados novamente no novo lugar.

O sucesso desta atuação, com a ajuda do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), deu início à elaboração de um projeto para que, futuramente, fosse criada Convenção Sobre a Proteção do Patrimônio Cultural.

No ano de 1972, a Conferência Geral da UNESCO aprovou a “Convenção Sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural”. Tal convenção é definidora das classes de sítios naturais que podem ser considerados para inscrição na Lista do Patrimônio Mundial, além de definir o papel que os Estados-membros têm de identificar possíveis sítios, protegê-los de preservá-los. Cada Estado-membro, ao assinar a Convenção se compromete à conservação não apenas dos bens patrimoniais no âmbito mundial que estão localizados fisicamente em seu território, mas de dar proteção aos próprios bens do patrimônio nacional.

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1.1. Patrimônio: Definição polissêmica

O conceito de patrimônio, atualmente, não pode ser analisado como era há um passado bem recente. Historicamente, patrimônio era conceito ensimesmado, porém, tal rudeza de definição não é mais possível.

A palavra patrimônio tem sua origem no latim e, segundo Aurélio, 2010,2 é “herança paterna, riqueza” na acepção figurativa; mas, pode ser ainda, “complexo de bens (...) suscetível de apreciação econômica” no âmbito jurídico.

A UNESCO, quando define patrimônio, trata tal definição em caráter extremamente amplo, uma vez que inclui em tal preceito: monumentos históricos, lugares sagrados, obras de arte, parques naturais, paisagens modificadas pelo homem, ecossistemas e diversidade biológica, tesouros subaquáticos, objetos pré-históricos, peças arquitetônicas e tradições orais e imateriais da cultura popular.

Além de definir patrimônio tão amplamente, sugere a UNESCO, ainda, uma postura de proteção daquele ente que possui o patrimônio, não conferindo prioridade no cuidado, seja por particular ou órgão público.

Importa salientar que a França teve papel preponderante no que tange a conceituação e a evolução histórica de patrimônio no mundo. Desde o conceito cristão de patrimônio sagrado da fé católica no campo religioso, até o patrimônio vislumbrado através de fragmentos, para que ficasse demonstrada a memória não perdida.

No final do século XVIII, um acontecimento de repercussões mundiais introduz modificações de imensa profundidade na concepção de patrimônio: a Revolução Francesa. Surge, então, a necessidade de preservar e valorizar os bens representativos da nação francesa. Essa necessidade urge por ver a França a proximidade da perda de seu patrimônio. Tal possibilidade de perda torna-se, então, ao mesmo tempo, causa e efeito da proteção.

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Para Gonçalves3, uma nação “torna-se o que ela é na medida em que se apropria do seu patrimônio”. Cuidou disso a França no intuito de preservar documentos, igrejas e outros lugares afins para que o patrimônio pudesse ser transformado em alegoria da História.

O século XX foi espalho da consolidação do pensamento iniciado no século XVIII, onde percebe-se refletidos os pensamentos através da consolidação dos instrumentos legais de proteção ao patrimônio, que a partir daí é classificado como bem público.

Mas a contemporaneidade traz novos riscos ao bem protegido, pois é visível o efeito perverso de uma indústria cultural, principalmente aquela trazida pelo turismo, que ameaça a gestão patrimonial. Poder-se-á dizer de situação paradoxal: de um lado a valorização do patrimônio como parte de um ativo econômico e, de outro, uma exposição à banalização e à depredação.

No Brasil, desde a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), no ano de 1937, em pleno Estado Novo, foi institucionalizada a prática do “tombamento”, visando à busca da identidade nacional por meio da preservação e da conservação do patrimônio físico. Tudo isso vislumbrado a partir do mesmo escopo francês, qual seja: possibilidade da perda. Acreditando que, com o tombamento, o patrimônio estaria legalmente designado, o que seria nada mais que atribuir um nome jurídico a essa possibilidade.

Para o Brasil, além do patrimônio histórico, também é interessante a evolução do conceito de patrimônio natural, que já seguiu o percurso ligado ao aspecto científico de questões que se referem ao meio ambiente.

As iniciativas estatais de proteção à natureza não são contemporâneas, podem ser encontradas desde os meados de 1872 quando, nos Estados Unidos da América, foi regulamentado o Primeiro Parque Natural: o Parque Yellowstone. Porém, apenas um século depois, em 1965 foi criada

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a Fundação do Patrimônio Mundial; e o mesmo parque só foi incluído na lista do patrimônio como primeiro sítio natural em 1978.

É nítida a vocação interdisciplinar da UNESCO, que desempenha papel pioneiro na convergência dos âmbitos natural e cultural no conceito de patrimônio. Isto quer dizer que as preocupações com o meio ambiente possuem também objetivos culturais de preservação. O Brasil tem buscado a aproximação entre noções de patrimônio cultural e natural por perceber a função simbólica de proteção dada pela UNESCO.

Segundo João Batista Lanari Bo4, a UNESCO não tem o escopo de ter o alcance e o detalhamento dos instrumentos inspirados em preocupações científicas do meio ambiente. Então, dadas as análises, possibilidade existe de fazer inferências no sentido de que a responsabilidade de assumir a postura de proteção pode e deve acontecer por parte do Estado.

A noção de patrimônio não pode ser sintetizada de maneira a ter uma formulação homogênea e definitiva. O tipo de ação estatal é moldado por cada noção patrimonial, levando em conta a historicidade que a informa.

Visão contemporânea de mundo conceitua patrimônio como riqueza acumulada de gerações passadas, disponível em forma de recurso, com finalidade precípua de valorização e transmissão a gerações futuras.

Patrimônio reconhecido como bem coletivo, até bem pouco tempo, era apenas o material. Hoje, o patrimônio imaterial ainda pouco explorado urge tomar o mesmo reconhecimento, mas tem aplicação pouco ou nada objetiva no Brasil; ficando sua discussão apenas no plano abstrato e subjetivo, sendo necessária a verificação e discriminação de elementos a ele agregados para que seja hábil sua aplicabilidade.

A Constituição de 1988, vigente no Brasil, dispõe sobre a proteção desse patrimônio imaterial em seu artigo 216:

“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,

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portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. (Lopes 2004: 266).

No ano de 2000, novo instrumento de preservação foi instituído denominado Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que passou a constituir o patrimônio cultural brasileiro e foi criado o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial através do Decreto 3.551. Porém o caminho para a preservação desse tesouro ainda é longo e deve ser paradigmaticamente modificado. Historicamente, fora constituído de maneira adversa.

2. Patrimônio não pode significar ruína

Trajetória de patrimônio no mundo inicia-se com a necessidade de preservação de monumentos históricos no continente europeu, a partir do século XIX; iniciativa tomada através de instituições governamentais e civis.

A consolidação de uma ideia protecionista de patrimônio histórico e artístico nacionais veio através de leis de proteção. Tais leis se consolidavam com a catalogação e organização de bens materiais.

À sombra da II Grande Guerra, o quadro de inclusão de obras consideradas patrimônio começa a ser mudado, pois todas as formas de arte e construção, sendo eruditas ou populares passam a ser alvo de proteção patrimonial. Hoje, inclui, também, obras do Século XX, como as obras modernistas, para Sant’Anna, 20015.

A expansão de valorização dos bens materiais que antes estava restrita apenas ao continente europeu começa a sua tímida expansão quando países não europeus assinam a Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da UNESCO.

No ano de 1977, a UNESCO utilizou critérios para que fossem reconhecidos bens e áreas, no mundo, como sendo patrimônio da

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humanidade. Através de experiências ocidentais de preservação, definiu o que seriam esses bens materiais; fundamentando tal critério em valores como monumentalidade e excepcionalidade para bens naturais e autenticidade para valorar bens culturais.

A Lista da UNESCO é...

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